Thursday, December 07, 2006

Um homem honesto...

Já era relativamente tarde. David apressava o seu passo para tentar chegar a casa a tempo de jantar. Enquanto descia a avenida ouviu uma voz familiar a chamar o seu nome. Era o seu amigo Mário. Depois da troca de cumprimentos habituais e da conversa de circunstância, Mário perguntou como estava a correr o casamento de David. Este percebendo de imediato que não iria chegar a casa a tempo, começou a discorrer sobre o seu casamento de uma forma atípica. O casamento estava bem, não tinha grandes razões de queixa, o senhor dizia que amava muito a mulher e que ela lhe oferecia tudo o que ele podia querer, excepto o estimulo intelectual. “Já tentei convencê-la a ler imensos autores mas ela não larga o Paulo Coelho e o Dan Brown, é exasperante, o único livro que consegui que ela lesse foi o “Perfume” do Suskind, de quem eu nem gosto particularmente, no fim ela disse-me que estava enjoada” Com a expressão nitidamente a transfigurar-se ele confessou que em desespero de causa tomou uma atitude da qual não se orgulha totalmente. Foi a um bordel intelectual. O bordel intelectual tinha um funcionamento em tudo semelhante aos bordeis normais. Marcava-se um quarto com uma rapariga e discutia-se o que se iria fazer com antecedência, estipulando o preço respectivo. Neste caso, para além da preferência estética da rapariga, era acordado o autor que iria ser discutido e o tipo de abordagem ao mesmo. A vida de muitas daquelas raparigas não é fácil, estão ali exclusivamente pelo dinheiro dizia David, muitas delas chegam mesmo a sofrer violentos abusos intelectuais, como terem de ler bibliografias inteiras de Sartre, Derrida ou Foucault para poder agradar a muitos homens que não estavam satisfeitos com o acto de loucura que é pagar para discutir filosofia ou literatura com uma mulher à sua escolha. Tal como nos bordeis sexuais, também aqui grande parte das mulheres vinham de leste, aproveitando assim o facto de elas virem de um suposto sistema de ensino comunista de excelência. Era uma pena que a liberdade para exercer nunca fosse de excelência, mas aqui eram das mais requisitadas, não pela instrução, mas porque Dostoievki soava melhor com um sotaque de leste.
David revelou então que tinha começado a frequentar o bordel e que já tinha estado com imensas raparigas a discutir inúmeros autores desde T.S. Elliot até David Hume, passando por muitos outros. Mário, intrigado, não resistiu a perguntar se ele em alguma ocasião tentou fazer sexo com uma da raparigas. David respondeu que tal era expressamente proibido e que o sexo não movia os homens que iam até ao estabelecimento em questão. No entanto, David acabou por revelar que uma das raparigas, durante uma discussão sobre Kierkegaard, confessou estar apaixonada por ele e queria consumar a sua paixão através do acto sexual. Ele recusou imediatamente dizendo que só trai numa vertente, nunca em mais do que uma. Um homem honesto só trai ao nível sexual ou ao nível intelectual, se junta as duas vertentes numa só, já está a ultrapassar o seu conceito pessoal de honestidade, arriscando a que o síndroma “dostoievskiano” comece imediatamente a minar a sua consciência. “Saber onde parar é o factor definidor da moral individual” finalizou.
Mário acena com a cabeça em sinal de concórdia com um espírito enternecedoramente corporativista. Já se fazia tarde. “Dá cumprimentos lá em casa” diz Mário. “Serão entregues” foi a resposta.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

não sei se leste os textos do woody allen, na recolha «sem penas» há um texto como o teu, meninas de luxo em ambience sexo-pago que discutem melville a pedido.
acho que mais uma vez fizeste umas das tuas «pré-cognições»!

12/12/2006 9:50 AM  
Blogger the visitor said...

Não, Não. Desta vez enganaste-te ehhe Eu realmente li o “without feathers” . Assim como o “the whore of Mensa” onde o conceito aparece. Achei que o conceito era bom demais para um policial e decidi dar-lhe outro caminho : ) mais virado para dentro, talvez...

12/12/2006 5:29 PM  

Post a Comment

<< Home

eXTReMe Tracker