Tuesday, December 12, 2006

O poço

Há pares românticos que são clássicos contemporâneos. O operador de câmara e a repórter, o patrão e a secretária, a estrela de rock e a groupie, a turista e o guia, os socialistas Ségolène Royal e José Sócrates, enfim, uma infinidade de clichés.
Contaram-me uma história sobre o primeiro casal da lista apresentada. Estando eu em permanente veneração pela coscuvilhice, não resisti contar (há rumores de que eu já dissertei sobre a vida pessoal de Madonna, mas falhava sempre o “timing de acção”, quando o fazia já se sabia a cor do próximo filho adoptivo).
Joana era uma alegre repórter que ia para todo o lado cobrir histórias sobre gatos com angústias existenciais, baratas com excesso de lucidez e pessoas que colocavam a hipótese do Woody Allen ser de esquerda. É um trabalho duro apesar de tudo.
Samuel era o operador de câmara que a seguia para todo o lado ( sublinhar “todo o lado”). Não apreciava particularmente a palavra escrita. Dizia-se um rapaz de acção e não de teoria, um fã devoto do movimento empirista apesar de não ter consciência da existência do mesmo. Eufemismos, eufemismos, sim, eu sei. O contacto fê-los apaixonarem-se um pelo outro, mas também há indícios de que possa ter sido alguma espécie de afinidade não-física. “Ele é um querido, está sempre disposto a ajudar” dizia ela, o que é natural num homem que se define como homem de acção, isso e muito mais, desde que a acção não cesse de existir. O pragmatismo ainda é a única forma reconhecível de inteligência. Entretanto, num belo dia de sol, Samuel cai a um poço. Não estou certo que tenha caído de cabeça, mas parece-me que tal facto é irrelevante. Joana ficou muito alarmada e começou correr desalmadamente para o poço chamando pelo nome do seu companheiro com uma postura “Shakespeareana”. Ele respondeu de lá de baixo dizendo que estava bem, estava estranhamente calmo dada a situação e com um tom de voz ligeiramente diferente começou a citar Santo Agostinho “ A confissão das más acções é o primeiro passo para a prática de boas acções." , "Dai-me a castidade; mas não ainda." e ainda "Não há mentira, apesar do que se diz, sem intenção, desejo ou vontade de enganar". Ela respondia-lhe “ O que dizes? Não és católico e muito menos mostras respeito pela doutrina”. Ele volta a responder, desta vez com uma citação de Walt Whitman “Do I contradict myself? Very well then, I contradict myself”. Ela receava tê-lo perdido para sempre, aquela queda poderia ter eventualmente mudado o homem que ele era. Estava ela numa atitude precatória tentando salvar o rapaz quando a ajuda chegou. Ele saiu do poço imaculado, a destilar confiança e com um olhar aguçado dirigido para ela e para a sua câmara de filmar. Ela descansou, ele tinha voltado a ser um homem de acção. Tudo teria sido um devaneio momentâneo e a TVI ainda continuava a apostar nas novelas portuguesas.
Eles voltaram ao amor, à cópula e a tudo o resto, mas o “tudo o resto” revelou-se mais inusitado do que a famosa queda no poço.

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