Friday, January 26, 2007

10 minutos antes...

A reunião estava marcada para as 2 da tarde. O Carlos apareceu às 13:50. Não era surpresa. Ele tinha para si mesmo uma espécie de código deontológico que jamais poderia ser quebrado. Chegar 10 minutos antes da hora era imperativo em qualquer circunstância. Esse tempo era o suficiente para se preparar para qualquer eventualidade. Ao contrário de Santo Agostinho, ele sabia explicar o que era o tempo. O tempo era um gato na estrada que ao tentar fugir do carro foge para a frente, depois lembra-se de voltar para trás e é invariavelmente atropelado de forma mortal. Os 10 minutos não evitavam a morte do gato mas dava-lhe tempo para se preparar para o acontecimento fúnebre. O respeito pelo tempo alheio era importante para ele no sentido em que acreditava que o tempo é um reconhecimento global das mentes. Desrespeitar o sentido de globalidade poderia colocar em perigo a linha universal como a conhecemos. O seu maior temor seria o de que as pessoas de tanto se desencontrarem com as horas combinadas pudessem de alguma forma destruir a unidade do tempo, como que num processo de osmose entre a psique humana e a função da mente que define a linha temporal.
Os outros (confirmando que o inferno são mesmo os outros) foram chegando lentamente. Uns chegavam 5 minutos depois das duas, outros 10 minutos e alguns até mesmo 20. Ao chegarem iam pedindo desculpa e perguntando por café, sabendo que nada se faz sem café, havendo até quem ache que a dependência de café por parte do mundo ocidental é bem mais grave do que a dependência de petróleo, e de consequências bem mais sérias. Para ninguém se sentir desvitalizado, é concedida a pausa para a tal bebida ideologicamente iluminante. No fim da reunião todos acabam por sair convictos da força laboral que o epíteto “reunião” tem na sociedade, mesmo sabendo que tudo o que se fez nela podia ter sido feito em casa de forma isolada, senão tudo, pelo menos grande parte. Carlos já não suportava ouvir alguém dizer com um ar fatigado e moribundo (mas obviamente altivo) “hoje estive numa reunião de 5 horas!!”. Um dia ao ouvir alguém proferir tal frase respondeu “eu hoje estive a ver televisão a tarde toda, mas quando me reuni comigo mesmo foi como se trabalhasse 5 horas”. Não é preciso dizer que Carlos era visto como um enigma humano, o que, bem vistas as coisas, por esse ponto de vista, apenas o tornava num ser humano vulgar.
A epidemia das reuniões continuava. Carlos chegava sempre 10 minutos antes. O relógio de Cuco podia ter sido inventado por ele, se ele tivesse sido um emigrante português na Suiça. Mais uma reunião, e mais uma, e mais uma, e outra, e outra, e ele chegava sempre com a antecedência rotineira. Um dia algo aconteceu, algo tão inusitado como inesperado. Algo que podia mudar toda a sua rotina e os hábitos religiosamente cristalizados. Esse algo podia fazê-lo chegar atrasado. Quando todos os que estão a ler esta história (inclusive a minha pessoa) começam a pensar que o Carlos finalmente não chegou com 10 minutos de antecedência a um encontro e que algo de excepcional vai acontecer, todas a expectativas saem goradas porque este acabou por chegar novamente às horas a que sempre chega. Este rapaz é um hino à rotina e não a iria quebrar só para que um tipo como eu pudesse contar aqui uma história interessante. No entanto consegue passar a beleza da perfeição rotineira, a beleza de uma máquina de engrenagens ciclicamente perfeitas que por assim ser consegue ter a estrutura de vida necessária para criar feitos extraordinários.

“Remain orderly in your life so you can be free and chaotic in your work” Rachel Owen

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